quarta-feira, 18 de abril de 2012

o começo e o fim

Faço as contas e concluo que tudo somado, devo ter completado uns 30 meses inteiros a viver em Portugal.
Não é muito e não é pouco, a verdade completa é que acho a conta certa e justa para uma despedida. Não há de ser nada, repito. Como boa cigana, sou versada em artes do adeus, em montar malas de viagens e álbuns de recordações mentais. Confesso minha maluquice. Fico olhando para as coisas e imaginando do que é que vou sentir falta - ou não. Já comecei o exercício de desapego afetivo e no topo da lista de pequenas penas está a paisagem. A semana toda tenho estado envolvida com a percepção mais apurada do espaço. Para todo lado que eu vá, em todos os momentos do dia, a vastidão me acompanha. Quase nunca há grandes obstáculos para os olhos alcançarem o horizonte. Isto nunca chegou a me passar desapercebido mas, com a intenção alerta, os sentidos se aguçam. Respiro como nunca – e o ar daqui também não é de se jogar fora, muito pelo contrário. As percepções todas se ampliam. A informação de que estas montanhas são feitas de granito duro e lascas de xisto foi introjetada. Alguma coisa de sua solidez e força, sinto, agora fazem parte de mim. É primavera - abril águas mil - mas já sei contrapor ao verde e às primeiras flores, as cores de outras estações.Lembrar-me que já não verei os ocres do outono, dói um pouco, confesso. Em compensação sei que nunca mais esquecerei o que quer dizer terra saibrosa, nem deixarei de sentir o toque áspero do que aqui se chama relva. Carvalhos são árvores também inesquecíveis. Há uma dignidade nelas que nem os jatobás da minha terra conseguem superar. Assim como a floresta de pinheiros, parecem ter estado sempre aqui, resistentes como o povo que com elas cohabita. Ainda não estou pronta para dizer adeus às pessoas, também por isso alongo o entreter-me com a paisagem. Hoje chove e a umidade é meu elemento original mas na minha terra, eu sei, até a umidade é outra. Por enquanto abraço esta que me abraça e deixo escapar umas lagrimazinhas de pura nostalgia do que ainda vou perder. Não há de ser nada, repito, bebendo vastos goles de ar desta que não mais deixará de ser, para mim, a amada Serra.

sexta-feira, 30 de março de 2012

De tanto passear meu olhar pelos séculos, estraguei meu senso de gosto. Na fotografia, todo mundo é bonito. Nos gestos, nem tanto.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Revolução particular


Nesta casa de pedras milenares
Reconstruída século a século
Encadeio palavras
Trincadas pelo uso
E emparedada no tempo
Tento ampliar
As frinchas
E demolir
O hábito

A gente tá sem colete

Tem uma notícia não tão recente que não me sai da cabeça. A do PM que foi baleado enquanto tentava negociar a rendição de um bandido que mantinha 3 reféns. Ele estava sem colete.
Porque é que ele estava sem colete ? Tem duas versões : Saiu na pressa, disse o comandante. A outra dá conta que ele tirou o que tinha conseguido emprestado para dar ao cinegrafista da Rede de TV. O cinegrafista tinha ido lá produzir o circo de cada dia, precisava estar lá, senão na hora do café da manhã, o que é que as pessoas iam passar no pão ? O fabricante de margarina só patrocina o jornal se der Ibope. Não dá pra improvisar, explorar os nossos baixos instintos é lucro certo.
Fiquei chateada, quando li a notícia. Porque é que o cara estava sem colete ? O cara não tinha nada que estar sem colete. Se ele estivesse de colete, se salvava. Não. Depois eu soube que o colete não ia adiantar nada. A bala entrou pelo braço e passou pela lateral, o colete não ia poder detê-la. O cara morreu. Fiquei chateada. Depois me veio uma certeza; é isso aí, nós somos todos uns sem-colete. E quem pensa que está seguro porque usa um, está enganado.Ou um dia vai sair de casa apressado, todo mundo sai de casa apressado, e num belo dia desses, vai esquecer o colete. Se não for você, vai ser seu filho, seu vizinho, seu amigo, sua mãe, sua irmã, alguém vai acabar esquecendo o colete.
Nós temos índices de violência equivalentes a de países em guerra, dos países que oficialmente estão em estado de guerra. Não adianta colocar mais soldado na rua. Nas guerras, o que mais tem é soldado nas ruas, dos dois lados do conflito. Numa guerra, nem mesmo o colete salva. Então a gente finge que não está em guerra (tem também os que vivem em função dos coletes que não adiantam nada). Daí me lembrei de relatos que ouvi de pessoas que viveram em países em guerra. No Brasil, igualzinho o que acontece nos países em guerra, as pessoas estudam, trabalham, dão festas, vão ao cinema, ouvem música romântica, tomam todas, ficam quietinhos na toca, caem na vida. Todo mundo, quando pode, finge que não está em guerra . A gente finge que nossas mensagens de amor, que nossas orações pela paz, que nossas boas intenções, bons pensamentos, bons hábitos, serão nosso colete de salvação. Não são e não serão. Porque enquanto a gente está fazendo tudo isso, os senhores da guerra estão escrevendo em todos os muros a máxima que move a guerra: a vida não vale mais do que a grana, tudo que importa é a grana. E é por isso que os mais objetivos, os mais pragmáticos, continuam a levar ao pé da letra a mensagem, continuam levando o muro a peito, disparando quantas balas forem necessárias para pegar grana, para ganhar grana, para defender a grana, para embolsar grana ou, mais grana. Guerra é guerra. Onde tudo que importa é ter grana e vale tudo para ter grana, quem acha que está usando colete, quem acha que está a salvo, só está se enganando. Estamos todos sem colete e precisamos parar de fingir que a guerra não é conosco. Ou que a solução para acabar com a guerra é produzir mais guerra.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Conversa em português

Dois garotos com menos de doze anos, na preguiça do final da tarde.
- Ó pá, mas se te digo que o cão não te vai morder.
- Ai, é ? Está a te armar em parvo ou o quê?
- Estou te a dizer. O cão não te vai morder, ó pá.
- Não. Só vai brincar às minhas carnes.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Solidariedade

Ontem andei falando por aí como está faltando solidariedade e delicadeza. Hoje, a técnica do mamógrafo, apertou o botão da prensa e começou a me contar como o dia dela estava infernal. Eu só consegui ouvir por uns 20 segundos porque quando não aguentava mais a dor, lembrei que ainda ia demorar o tempo dela fazer a imagem. Disse um ai, meio como quem pede desculpas. Ela deu-se conta e foi pra trás da máquina fazer o serviço. Bem, pelo menos não me bateu.

sábado, 4 de junho de 2011

Malfadadas coisas que apitam

São Paulo continua extraordinária. O Rio pode ser lindo mas só São Paulo me faz sucumbir. Para bem e para o mal. Quando cheguei à Quinta, o que primeiro me fisgou foi o silêncio, óbvio. Neste retorno a Sampa nóia, como diz Darcy, o que me derrubou foi o ruído. Meus adoráveis anfitriões moram num terceiro andar, um apartamento agradável e bem localizado. O único inconveniente é que os quartos tem janelas para a rua. Você acorda com a cidade dentro da sua cabeça, um massacre da subjetividade. Na sala ou na cozinha, ela ainda parece distante mas quando sua cabeça está sobre o travesseiro a cidade te invade como um estuprador. Em compensação fui fecundada em vários sentidos. Muitos encontros. Um deles com a Natália que me diz que eu disse isso em aula : "malfadadas coisas que apitam" a propósito de... não importa. Ela me explicou e eu entendi que é uma expressão que bem se pode aplicar a muitas coisas. Sem os alunos eu seria bem mais obtusa, esta é que é a velha verdade.